quarta-feira, 31 de agosto de 2016

A relação entre a igreja e o estado - por Franklin Ferreira




Deus estabelece na criação várias instituições para a ordem social, cada qual com sua própria esfera de atividade e missão, e responsável por algo diante dele.1 Mas, antes de considerarmos a posição reformada sobre a relação da igreja com o estado, será útil compará-la com outros modelos políticos e teológicos rivais.

O gráfico abaixo ilustra as percepções de cristãos influenciados pelo fundamentalismo americano, que se tornou um dos principais modelos de relação com a sociedade entre os evangélicos no século XX. A partir desse modelo, defendia-se não somente uma separação do Estado, mas também uma separação de outras esferas da criação, percebendo-as como essencialmente pecaminosas e impedidas de qualquer possibilidade de redenção:
   


A visão reformada da sociedade não se centraliza no indivíduo nem na instituição, mas na soberania de Deus sobre as esferas da criação, nas quais diferentes instituições estão debaixo do reinado de Deus. Como Koyzis afirma, esta posição é uma afirmação não hierárquica da sociedade civil, na medida em que “(1) a soberania derradeira pertence somente a Deus; (2) toda soberania terrena é subsidiária da soberania de Deus e (3) não há nenhum foco último (ou penúltimo) de soberania neste mundo do qual todas as demais soberanias sejam derivadas”.2

Essa posição destaca que “todos os homens vivem numa rede de relacionamentos divinamente ordenada.” Nesse sentido, “as pessoas não encontram sentido ou propósito quer em sua própria individualidade, quer como parte de um todo coletivo.” Na verdade, “elas atendem a seus chamados dentro de uma pluralidade de associações comunais, como família, escola e Estado”, portanto “Deus ordenou cada uma dessas esferas de atividade como parte da ordem original. Juntas, elas constituem a comunidade da vida.”3 O gráfico abaixo esboça essa posição:

   


Nessa posição, a família, o indivíduo e a igreja são esferas independentes do Estado, pois existem sem este, derivando sua autoridade somente de Deus. O papel do Estado é mediador intervindo quando as diferentes esferas entram em conflito entre si ou para defender os fracos contra o abuso dos demais. Deste modo, a convicção que está por trás desta posição foi assim expressa por Abraham Kuyper: “Na extensão total da vida humana não há nenhum centímetro quadrado acerca do qual Cristo, que é o único soberano, não declare: Isto é meu!”.4

Abaixo, é oferecido um desenvolvimento dessa posição por meio de algumas premissas que podem guiar o entendimento evangélico da relação entre o cristão e a política:5

Em primeiro lugar, afirma-se a distinção entre igreja e Estado, lembrando que toda autoridade procede de Deus. As tarefas da igreja e do Estado são de dois tipos e são distintas, não podendo ser confundidas. Deus instituiu o governo civil para nosso benefício a fim de refrear o mal e promover o bem (Rm 13.1-7; 1Pe 2.13-17), e deve haver distinção entre aquilo que é governado pela igreja e aquilo que está sob a autoridade do governo civil (Mt 22.21). A existência do Estado deve ser reconhecida como um dom e uma ordem de Deus. Portanto, os que assumem cargos públicos devem reconhecer que sua autoridade é delegada. O governo estabelecido por Deus é mediado pelo povo, que elege seus governantes. Estes são eleitos para servir ao povo, ao mesmo tempo em que cumprem suas tarefas com senso de dever, pois sabem que darão contas de seus atos perante uma autoridade maior.

Em segundo lugar, rejeita-se o conceito de soberania absoluta do Estado e o conceito de soberania absoluta do povo. Para a fé cristã, o poder reside em Deus e em Cristo, que é o Senhor de todo poder e autoridade (Ef 1.21,22) e “o soberano dos reis da terra” e “REI DOS REIS E SENHOR DOS SENHORES” (Ap 1.5; 19.16), comandando todas as esferas sociais. Somente Deus detém o poder absoluto: “Porque o SENHOR é o nosso juiz; o SENHOR é o nosso legislador; o SENHOR é o nosso rei; ele nos salvará” (Is 33.22). Portanto, Deus é a fonte final da lei e de toda autoridade. Logo, prestar fidelidade ou lealdade absoluta ao Estado é idolatria (Dn 3.1-30), pois é Deus quem estabelece o certo por meio de sua lei, portanto deve-se compartilhar a lei de Deus por meio da mudança das estruturas sociais. Por isso que, na mesma medida em que as leis estabelecidas numa nação devem ser derivadas da lei de Deus, essas leis devem ser aplicadas a todas as pessoas, incluindo os governantes. Mesmo numa nação que não é cristã, pode-se apelar à lei de Deus escrita na criação e gravada na consciência dos seres humanos, que é coincidente com a lei revelada. Portanto, numa nação, não há ninguém que esteja acima da lei (Dt 17.18-20). Esse é o princípio da lex rex (a lei é o rei), que se opõe ao princípio despótico da rex lex (o rei é a lei).6  Como Calvino escreveu:

O Senhor, portanto, é o Rei dos reis, e a ele devemos ouvir acima de todos tão logo abra sua boca. De forma secundária, devemos estar sujeitos aos homens que têm preeminência sobre nós, mas somente sob a autoridade de Deus. Se as autoridades ordenarem algo contra o mandamento de Deus, devemos desconsiderá-lo completamente, seja quem for o mandante.7 

Em terceiro lugar, Deus delega autoridade tanto ao governante quanto às pessoas. Ao ocupar um cargo de autoridade, nenhum homem tem poder sobre outro, a não ser quando essa capacidade é delegada por Deus. Mas essa autoridade é relativa e revogável. Por isso, os cristãos devem opor-se a todo sistema político totalitário. Mais do que um direito, isto é um dever (Êx 1.17,21; Dn 3.18; 6.10; Et 4.16; Mt 2.8,12; At 4.18,20; 5.29). A fé cristã honra as autoridades, embora negue ao Estado o direito de intervir em matérias de culto, doutrina e ética. O respeito à autoridade é necessário, mas jamais ao custo da liberdade de consciência, pois somente Deus é o único Senhor. Neste sentido, “no momento em que os magistrados vão além dos limites de sua autoridade, (...) tornam-se semelhantes aos ladrões, usurpadores e violadores”.8  Já que a autoridade não é algo intrínseco ao governante, mas delegado por Deus, os cristãos devem resistir, pelos meios corretos e legítimos, a quem exerce a autoridade política contra a vontade de Deus. Assim sendo, para a tradição reformada, o governo é governo legítimo quando e na medida em que é servo de Deus. Assim, não devemos identificar um governo, de forma direta e automática, com a vontade de Deus.9  Nesse sentido, a resistência ao Estado que faça mau uso da autoridade que lhe foi delegada deve ser entendida como desobediência civil.10  Desde que exercido dentro de limites aceitáveis, esse é um mecanismo legítimo a que tem direito todo cidadão e, de forma específica, todo cristão, quando em confronto com um Estado totalitário que interfere na esfera litúrgica, doutrinária ou ética, e requer para si o que equivale à adoração (Ap 13.1-18). Portanto, a “rebelião contra os tiranos é obediência a Deus” (Rebellion to tyrants is obedience to God).

Em quarto lugar, nenhuma ideologia é absoluta nem pode ser confundida com o evangelho. Com acerto, aDeclaração Teológica de Barmen afirma: “Rejeitamos a falsa doutrina de que à Igreja seria permitido substituir a forma da sua mensagem e organização, a seu bel-prazer ou de acordo com as respectivas convicções ideológicas e políticas reinantes”.11  Sempre que cristãos identificam determinada ideologia com o reino de Deus ou com a mensagem bíblica, essa mensagem não apenas foi distorcida, como também acabou sendo obliterada. Por outro lado, a igreja deve manter vigilância sobre o Estado. Não se pretende com isso substituir o sermão baseado na Escritura pelo discurso político. Adorar a Deus, proclamar sua Palavra e ministrar os sacramentos é a principal tarefa da igreja, além da qual não existe outra. Ao proclamar com fidelidade a Palavra de Deus, a Igreja influencia o Estado, fazendo com que suas leis se conformem com a vontade de Deus. De tal fidelidade ao chamado primário da comunidade cristã decorrem consequências políticas e sociais na sociedade.

Em quinto lugar, o realismo cristão ressalta que a corrupção na política tem origem primariamente no coração dos seres humanos. Se a doutrina da criação afirma a dignidade humana, o ensino bíblico sobre a queda afirma a corrupção humana. Os pecados individuais se tornam pecados estruturais, tais como idolatria, egoísmo, violência, despotismo, corrupção; estes acabam por afetar as estruturas do poder constituído. Por isso, a igreja cristã “prega uma conversão interior dos governantes e dos governados a Deus”, crendo que, a partir do arrependimento e quebrantamento pessoal, as estruturas serão limpas de iniquidades.12  Um ponto importante que se deve destacar aqui é que a “corrupção da chamada classe política” deve ser interpretada como “um reflexo da sociedade, pois a sociedade é corrupta e isso inclui a igreja”. Com consternação, constata-se que “o povo de Deus deveria ser um exemplo de conduta e obediência, mas nossas ações revelam que não somos muito diferentes da sociedade em geral”.13  Acabamos por reproduzir os pecados da sociedade, em vez de influenciá-la, santificando-a.

Por outro lado, a revelação geral e a graça comum ensinam que “há princípios que, se aplicados, produzirão a ética na política.” Essas são as doutrinas que proporcionam a base dos valores éticos em pessoas que não são cristãs. Portanto, “o caminho para a ética na política” não passa pela conversão de todos ao cristianismo, nem consiste “em colocar em cargos políticos quem se professa cristão”, mas em “contribuir para que a lei de Deus seja reconhecida” por todos.14  Por isso, podemos cooperar com incrédulos como cobeligerantes na esfera política, lutando contra males aos quais também nos opomos.

O fundamento da cobeligerância é a área de consenso ético que tem por base a Escritura: por exemplo, homicídio, adultério, furto e “falso testemunho” são moralmente errados (Êx 20.13-16). Na esfera política, pode-se servir pontual e transitoriamente com pessoas, grupos, movimentos, organizações e instituições que convirjam em termos de valores éticos cristãos.15  A Igreja mantém sua independência e identidade, tendo a Escritura como padrão e o Espírito Santo como fonte de discernimento, assim como a confissão de fé e catecismos como “fiel exposição do sistema de doutrina, ensinado nas Escrituras".16  

Em sexto lugar, por causa do pecado na sociedade, a república se torna não apenas o melhor sistema, mas o sistema mais viável. A forma de governo que mais se aproxima do modelo bíblico é a república, na qual a nação é governada pela lei constitucional e administrada por representantes eleitos pelo povo. Porque somente Deus concentra em si todo o poder (Is 33.22), deve haver a divisão e a separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário, de modo que nenhum governo ou ramo do governo monopolize o poder. Assim, a república se torna o melhor sistema, pois é a salvaguarda das liberdades individuais, “designada para fragmentar o poder político, de modo que ele não possa ameaçar as vidas, liberdades e propriedades".17  Portanto, devido à inclinação humana para a injustiça, advinda do pecado, a república torna-se necessária; e devido à inclinação humana para a justiça, capacitada pela graça comum, a república torna-se possível. Como disse Winston Churchill, talvez o mais importante político do século XX: “Muitas tentativas foram feitas para diferentes formas de governo, e muitas ainda serão tentadas neste mundo de pecado e dor. Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”.18

Portanto, em conclusão, os cristãos defendem os fatores que definem uma república, que são aqui esboçados e que podem ser deduzidos ou inferidos da Escritura:

•    Ênfase nas funções primordiais do Estado, em que os governantes têm a obrigação de zelar pela segurança do povo, afinal, para isso pagamos impostos (Rm 13.1-7);
•    Limitação da extensão e do poder do Estado, pois, a partir das Escrituras, entende-se que o governo não tem autoridade para estabelecer impostos exorbitantes, redistribuir propriedades ou renda ou confiscar depósitos bancários;
•    Separação e cruzamento fiscalizador (freios e contrapesos) entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, para que nenhum poder possua poderes absolutos, e para que sempre haja entre os poderes separação, independência e harmonia;
•    Lembrar que o papel do Estado não é igualar a todos, mas dar oportunidade de ascensão social a todos, investindo e promovendo educação e serviços médicos de qualidade;
•    Apoio a associações e organizações que promovam a justiça em todos os aspectos da vida, especialmente aos marginalizados e oprimidos (Jr 22.3; Tg 1.27; 2.1-10; 5.1-8).19
•    Promoção de uma ética protestante do trabalho, que “é um conjunto de virtudes econômicas [fundamentadas na Escritura]: honestidade, pontualidade, diligência, obediência ao quarto mandamento — ‘seis dias trabalharás’, obediência ao oitavo mandamento — ‘não furtarás’, e obediência ao décimo mandamento — ‘não cobiçarás’”, reconhecendo que a ênfase no “trabalho produtivo origina-se da Bíblia e da Reforma”;20
•    Direito à propriedade privada como direito fundamental (Êx 20.15,17; 1Rs 21.1-29);21
•    Alternância do poder civil, que impede que um partido ou autoridade se perpetue no poder, assim como a defesa do pluralismo político e partidário;
•    Centralidade do contrato social, que é um acordo entre os membros de uma sociedade pelo qual reconhecem a autoridade sobre todos de um conjunto de regras; a constituição, que limita o poder, organiza o Estado e define direitos e garantias fundamentais;
•    Garantia das liberdades individuais, por meio do estabelecimento de normas gerais de conduta, que redundem em liberdade de expressão, associação e de imprensa;
•    Voto distrital para o poder legislativo, em que o país ou o estado é dividido em distritos eleitorais com aproximadamente a mesma população; cada distrito elege um deputado e, assim, completam-se as vagas no congresso e nas câmaras estaduais.22

Esses são o conjunto de princípios que a tradição reformada tem afirmado ao tratar da relação dos fiéis e da comunidade cristã com o Estado. Que, à luz desse ensino, os cristãos orem e intercedam pelos governantes, “para que tenhamos uma vida tranquila e serena, em toda piedade e honestidade” (1Tm 2.1-3).

O Estado não é a solução última (ou penúltima) para a sociedade, pois o melhor que o Estado pode fazer é refrear a injustiça causada pelo pecado. A salvação somente é encontrada em Deus e em Jesus Cristo. Portanto, o papel da igreja é proclamar essa salvação como a única solução final para a sociedade: “Porque o SENHOR é o nosso juiz, o SENHOR é o nosso legislador, o SENHOR é o nosso Rei; ele nos salvará” (Is 33.22).

Fonte: www.teologiabrasileira.com.br

VINHO NOVO EM ODRES NOVOS



O odre era um saco de pele de animal costurada que servia de recipiente para guardar líquidos como água (Gn 21.14,15,19), leite (Jz 4.19) e vinho (Js 9.4). Mas deveria ser usado especificamente para cada coisa separada para não deixar sabor de leite no vinho ou deste na água por exemplo.

O odre envelhece com o tempo. O couro encolhe e enruga. O sabor do vinho velho ou de qualquer outra mistura pode estragar o vinho novo. Mas o vinho novo é mais ácido e pode corroer o odre. Além disso, o vinho novo vai liberando gases com o tempo e esticando o couro, então o se o odre já estiver velho pode estourar. Por isso Jesus disse que “vinho novo deve ser posto em odres novos [e ambos se conservam]” (Lc 5.38).

Um dos animais mais usados para fazer odres do seu couro era a ovelha, além do cabrito. Sua pele era retirada cuidadosamente e depois de um pouco cozida exposta na fumaça (Sl 119.23) era costurada bem apertado deixando apenas o pescoço aberto para inserir os líquidos e depois ser amarrado.

O odre da pele de ovelha representa a nossa carne fraca (Mc 14.38) que precisa ser arrancada de nós para não vivermos mais para nós mesmos e sim para Deus (Gl 2.20-22). O Espírito Santo quer habitar em nós e nosso corpo deve ser templo do Senhor (I Co 3.16), mas nossa carne corruptível não suporta o poder de Deus (I Co 15.50).
Portanto, estar em Cristo é nascer de novo, do Espírito Santo e ser novas criaturas. Paulo disse em Rm 5.5 que, a  "...esperança não nos deixa decepcionados, pois Deus derramou o seu amor no nosso coração, por meio do Espírito Santo, que ele nos deu". O Espírito Santo não poderia ter sido derramado na Velha Aliança. Lá ninguém recebia o Novo Nascimento. Somente agora na Nova Aliança Deus derramou sua Lei - o amor, com o derramar do Espírito sobre Novas Criaturas e recebemos a capacidade para obedecer a Deus.

 PR. WELFANY NOLASCO RODRIGUES